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Arco-íris

Por Ricardo Dalai - Maringá 2022


“Ricardo”, disse a professora, “a tia Cristina está chamando você na diretoria.” Tia Cristina era a diretora da escola em que eu estudei os primeiros anos, Pré-escola Arco-íris — interessante metáfora para o adulto no qual me tornei, ou só uma das tantas coincidências que vieram e viriam, e que não deixa de ser bonito. Coincidências são sempre poéticas, mesmo as banais: os encontros, olhares que se cruzam, os sonhos, duas realidades distantes que se cruzam no infinito de possibilidades, minha sexualidade e o nome da minha pré-escola. Essa coincidência é boba perto de outra, germinal: eu nasci na casa onde funcionava a escola. Minha família morava ali quando nasci, embora não lembre de muita coisa da casa senão como escola, os quartos como salas de aula, a cozinha como refeitório, o quintal como pátio e o jardim como parquinho.

Eu morei três anos naquela casa; estudei três anos naquela pré-escola.

Em julho de 1989, eu com quatro anos, houve um desfile na cidade com carros alegóricos e fanfarra. Todas as escolas da cidade participaram e as crianças desfilaram fantasiadas, representando elementos da Natureza: bichos, plantas, estrelas, sóis, luas e, é claro, sete alunos vestidos de arco-íris.

Eu seria um tigre. Entraria no primeiro dos grandes carros e estava ansiosíssimo, principalmente na semana que antecedeu o desfile. Minha mãe e minhas irmãs haviam feito uma fantasia linda de papel crepom e cartolina. Foi delas a tarefa de me transformar em tigre, em fera, animal selvagem para aquelas duas horas de desfile. Por duas horas, eu pensava, seria forte, grande, destaque ali, no carro, tigre, lindamente alaranjado, felpudo até (nas orelhas e no longo rabo que se estendia quando eu passava), e dentes e luvas a fantasia tinha. Ele, o tigre, e o leão, a onça, o antílope, o elefante, o urso, o lobo, o avestruz, a gaivota, águia e gavião, tucano e arara, a coruja e a cegonha, todos eles e alguns outros iriam no carro, acenando para o povo todo da cidade nas calçadas e praças. Assim fica justificada a minha ansiedade aos quase cinco anos.

Voltemos, então, àquele dia em que fui chamado (— “Ricardo...”) na sala da tia Cristina, e eu fui, não tranquilo, menos pressa que adiamento, não curioso, mas algo próximo do medo. Revisei as ações do dia buscando algum erro, uma falha, busquei lembrar as crianças com quem brinquei no recreio, com quem lanchei, se poderia existir o risco de ter machucado ou magoado alguém, mesmo que sem intenção. E vão dizer, claro, que a culpa é minha. Era medo quase, medo de ser repreendido, recusado, rejeitado. A culpa, menino, sempre a culpa.

Talvez eu tenha enrolado pelos corredores, acusado sede ou vontade de fazer xixi. Não me lembro se estava acompanhado ou não. Possivelmente sim, por uma tia de cabelo preto que aparece em duas fotografias minhas daquela época. Talvez eu tenha pensado em fugir, imaginado uma rota de fuga. Ou rezei. Talvez eu tenha rezado. Deus, avó, santa. Seguido a lentos passos e rezado. Rezo, então, e peço que não seja isso, nenhum erro ou falha, peço que não me descubram pelo que nem sei. Peço que não seja nada demais.

E não era.

Quando cheguei na sala, a diretora fez sinal para eu entrar. Entrei e vi, sentado frente à mesa da diretora, um menino que, se conhecia ou não, não sei, apagaram-se nome, rosto, voz, manequim ele é, sem feições, detalhes, apenas vulto ali, não por falta de importância, mas porque a memória, sabemos, diz respeito a mim, não a ele, nem a tia Cristina, acessórios no quadro, mas a mim. E lembro da única informação que aqui se faz necessária: o menino chorava.

“Ricardo”, a tia Cristina disse, “este é o Nome-Qualquer.” Provavelmente, em seguida, ela tenha falado em que turma estudava, dito algo sobre a família do menino, sobre como ele era novo na cidade e não conhecia ninguém. E dentre tanta coisa que ela provavelmente disse, disse a única que aqui se faz necessária saber: “E ele quer muito, muito mesmo, ser o tigre no desfile.”

Ele, o menino que eu não conhecia, queria ser aquele que eu seria, aquele que eu também queria ser. O desejo de quem era mais importante, o meu ou o dele? Qual vontade deveria ser respeitada? Era o choro? O choro que comovia? Eu poderia também chorar, mas por que me mantive firme? Hoje, lembrando, penso se o menino era rico, talvez fosse loiro, olhos claros, carro importado vindo buscá-lo na escola. Talvez fosse isso que fazia o desejo dele parecer mais importante que o meu. Posso ter pensado isso naquela hora, nunca saberei, mas outra pergunta eclode no quadro: por que eu respondi que “Claro, posso trocar, sim.”? Por que não disse Não? Vergonha? Bondade mesmo? Ou medo? Vontade de pertença, de fraternidade? Culpa...? Qual a dificuldade em dizer “Hum, poxa, que pena, bem eu queria, mas não posso trocar, I so sorry, baby frog.”

Mas também, talvez, eu tenha olhado para o menino desconhecido chorando e tive piedade, compaixão talvez, talvez até pena, olhei para ele e quis que ele parasse de chorar, desejei mais do que desejava a fantasia de tigre que ele parasse de chorar porque senão seu nariz ia ficar entupido por horas e provavelmente ele teria dor de cabeça. Era isto que eu tinha/tenho após chorar: uma dor de cabeça tremenda que desce pelo pescoço, que parece encurtá-lo, que parece pesar a cabeça, a consciência, a culpa. Expiação dos pecados que viriam.

Troquei. Trocamos. Ele usaria a minha fantasia e eu usaria a dele no desfile. Ele foi em cima do carro com todos aqueles outros animais, feras, mamíferos enormes e pássaros. Eu, não: eu fui caminhando no desfile, ao lado do carro, com peixes, e insetos, e pequenos animais como a raposa, e o gato, e o cão, e a hiena ou outros igualmente mínimos tipo o besouro, e a formiga, e a pulga, e a lagarta (antes da metamorfose, porque em cima do carro também brilhava uma borboleta colorida).

É estranho, e quase triste, pensar que isso tudo pode em nada se manter na memória do menino, que talvez tenha esquecido completamente tudo, ou seja vaga lembrança que surge quando indagado sobre. Tanta memória em mim. Claro que se percebe certo rancor no relato, mas é mais drama que mágoa. A mágoa que existe é também projeção minha tentando entender e imaginar o que aquele pequeno-eu pensou e sentiu. Eu, o de hoje, entendo o quadro como lição aprendida ali (escola ou casa), aqui resumido no dito: fazei o bem sem olhar a quem. Dentre todas as suposições, sabia disto: o menino chorava. O quadro na parede da memória me lembra, diariamente, que é a bondade gratuita, gentileza com o outro, o cerne do que é ser humano. E para ser borboleta, precisamos ser lagartas. Para ser príncipe, talvez seja preciso ser sapo. Arco-íris pós-tempestade, sempre em transição, ligando as coisas mesmo

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